sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Paulo Mendes Campos e o Botafogo



Em tempos de Bienal do Livro no Rio de Janeiro - termina neste domingo e infelizmente não poderei ir - indico uma série de textos do botafoguense Paulo Mendes Campos (1922-1991) inclusos no livro sobre futebol "O gol é necessário" (Editora Record, 2000), de onde foram retiradas frases famosas, como a "Há coisas que só acontecem ao Botafogo":

O Botafogo e eu


Que partilhamos defeitos e qualidades comuns, não há dúvida. Nos meus torneios, quando mais preciso manter os números do placar, bobeio num lance, faço gol contra, comprometo, tal qual o Botafogo, numa difícil campanha.

A mim e a ele soem acontecer sumidouros de depressão, dos quais irrompemos eventualmente para a euforia de uma tarde luminosa. Sou preto e branco também, quero dizer, me destorço para pinçar nas pontas do mesmo compasso os dualismos do mundo, não aceito o maniqueísmo do bem e do mal, antes me obstino em admitir que no branco existe o preto e no preto, o branco.

Sou um menino de rua perdido na dramaticidade existencial da poesia; pois o Botafogo é um menino de rua perdido na poética dramaticidade do futebol. Há coisas que só acontecem ao Botafogo e a mim. Também a minha cidadela pode ruir ante um chute ridículo do pé direito do Escurinho.

O Botafogo tem uma sede, mas esqueceu a vida social; também eu só abro os meus salões e os meus jardins à noite silenciosa. O Botafogo é de futebol e regatas; também eu sou de bola e de penosas travessias aquáticas. O Botafogo é um clube com temperamento amadorístico, mas forçado, a fim de não ser engolido pelas feras, a profissionalizar-se ao máximo; também sou cem por cento um coração amador, compelido a viver a troco de soldo.

Reagimos ambos quando menos se espera; forra-nos, sem dúvida, um estofo neurótico. Se a vida fosse lógica, o Botafogo deixaria de levar o futebol a sério, fechando suas portas; eu, se a vida fosse lógica, deixaria de levar o mundo a sério, fechando os meus olhos.

O Botafogo é capaz de quebrar lanças por um companheiro injustiçado pela Federação; eu aguardo a azagaia de uma justiça geral. O Botafogo pratica em geral o 4-3-3; como eu, que me distribuo assim em campo: no arco, as mãos, feitas para proteger minha porta; na parede defensiva, meus braços, meu peito aberto, meus joelhos e meus pés; no miolo apoiador, trabalho com os pulmões e o fígado; vou à ofensiva com a cabeça, a loucura e o coração. Falta um, Zagalo. Em mim, essa energia sem colocação definida é a alma, indo e vindo, indistinta, atônita, sarrafeada, desmilingüindo-se até o minuto final.

O Botafogo é capaz de cometer uma injustiça brutal a um filho seu, e rasgar as vestes com as unhas do remorso; como eu.

O Botafogo põe gravata e vai à macumba cuidar de seu destino; eu meto o calção de banho e vou à praia discutir com Deus. O Botafogo não se dá bem com os limites do sistema tático; tem que ser como eu, dramaticamente inventado na hora.

Miguel Ângelo é botafogo, Leonardo é flamengo, Rafael é fluminense; Stendhal é botafogo, Balzac é flamengo, Flaubert é fluminense; Bach é botafogo, Beethoven é flamengo, Mozart é fluminense. Sem desfazer dos outros, é com eles que eu fico, Miguel, Henrique, João Sebastião.

Dostoiévski é Botafogo, Tolstói é flamengo (na literatura russa não há fluminense); Baudelaire é fluminense, Verlaine é flamengo, Rimbaud é Botafogo; Camões não é vasco, é flamengo, Garrett é fluminense, Fernando Pessoa é Botafogo. Sim, Machado de Assis é fluminense, mas no fundo, no fundo, debaixo da capa cética, Machado, um bairrista, morava onde? Laranjeiras!

O Botafogo é paixão, é Brasil, é confusão;  Paulo Mendes Campos é paixão, Brasil, confusão.
O Botafogo conquistou um campeonato esmagando inesperadamente o Fluminense de 6 x 2; uma vez, enfrentei um dragão enorme e entrei no castelo encantado.

O Botafogo, às vezes, se maltrata, como eu; o Botafogo é meio boêmio, como eu; o Botafogo sem Garrincha seria menos Botafogo, como eu; o Botafogo tem um pé em Minas Gerais, como eu; o Botafogo tem um possesso, como eu; o Botafogo é mais surpreendente do que conseqüente, como eu; ultimamente, o Botafogo anda cheio de cobras e lagartos, como eu.

O Botafogo é mais abstrato do que concreto; tem folhas-secas; alterna o fervor com a indolência; às vezes, estranhamente, sai de uma derrota feia mais orgulhoso e mais Botafogo do que se houvesse vencido; tudo isso, eu também.

Enfim, senhoras e senhores, o Botafogo é um tanto tantã (que nem eu). E a insígnia de meu coração é também (literatura) uma estrela solitária.


Botafogo dos Botafogos        

Eu me assentarei nas arquibancadas para sofrer noventa minutos; mas a sua vitória será doce como os frutos. A sua ala esquerda pode desferir chutes indefensáveis, e a sua ala direita é mais insinuante do que o vento.

Eu vos conjuro, botafoguenses de todo o Brasil, a comparecer ao Maracanã; para o que der e vier; aquele é o Garrincha, ei-lo que vem como um cabrito montês, saltando os obstáculos; eis que entra na área adversária, causando um pânico formidável.

Se o Botafogo entrar bem, eu andarei pelos bares da praia até que assopre o dia e declinem as sombras; jardim fechado será a sua defesa, jardim fechado, fonte selada; Nilton Santos é como o aquilão, assoprando de todos os lados; e muito difícil será contê-lo. Dorme, Adalberto, ele velará o seu sono.

Eis que é Didi batendo à porta do adversário, e dizendo: "Abre, Castilho, sou eu"; e a sua folha-seca será bonita como um exército carregado de bandeiras; o Botafogo entrou por uma fresta e as entranhas do Fluminense estremeceram.

Os tricolores fecharam a porta com um pesado ferrolho; mas o Botafogo já tinha se ido, e era já passado a outra parte. O meu time é alvo e negro, e possui uma estrela solitária. Suas vitórias são melhores que o vinho; seus campeonatos são como a mirra preciosa.

O Botafogo desceu pela direita, terrível como um exército ordenado; nem todos os cacás do mundo terão forças para detê-lo; quem é este que avança pelo centro como um leão esfomeado? E eis que é o Paulinho abrindo a marcação dos contrários como um leão esfomeado; põe o teu selo sobre a leiteria, para que as gerações pronunciem o teu nome com respeito.

P.S.- Trecho de uma "crônica" ruim e nervosa que saiu publicada na manhã de 22 de dezembro de 1957 no Diário Carioca. Ruim, porém profética: no fim da tarde, o Botafogo era o campeão carioca, tendo vencido o Fluminense de 6 a 2, 5 gols de Paulinho Valentim e 1 de Garrincha. 

Salvo pelo Flamengo

Desde garotinho que não sou Flamengo, mas tenho pelo clube da Gávea um dívida séria, que torno pública neste escrito. Em 1956, passei uma semana em Estocolmo, hospedado em um hotel chamado Aston. Era primavera, pelo menos teoricamente, havia um congresso internacional na cidade, os hotéis estavam lotados, criando contratempos para turistas do interior ou estrangeiros. A recepção do Aston, por exemplo, vivia sempre cheia de gente implorando por um quarto ou discutindo a respeito de uma reserva feita por telegrama ou telefone.

Estava há dois ou três dias na cidade, quando me pediram para receber um brasileiro e encaminhá-lo ao hotel, onde lhe fora reservado de fato um apartamento. Era uma hora da madrugada quando entramos no hotel e me encaminhei até o empregado do balcão, dando-lhe o nome do meu amigo e lembrando-lhe a reserva. O funcionário, homem de uns sessenta anos e de uma honesta cara escandinava, tomou uma atitude estranha e difusa, que a princípio me surpreendeu e ia acabando por me indignar: ele não confirmava a existência da reserva, nem deixava de confirmar.

Como começasse a protestar, vi que seu rosto tomava uma expressão aflita; eu entendendo cada vez menos. Quando passei a exigir o apartamento com alguma energia, o homem, trêmulo, nervoso, pediu-me desculpas e trouxe afinal a ficha de identificação. Foi aí que vi levantar-se da penumbra de uma saleta contígua o gigante.

Se o leitor conhece um homem forte, mas muito forte mesmo, imagine uma pessoa duas vezes mais forte, e terá uma vaga idéia desse gigante que veio andando até nós, botando ódio pelos olhos e espetacularmente bêbado. O monstro passou por mim com desprezo e, agarrando o empregado pela gola do uniforme, entrou a sacudi-lo e insultá-lo em sueco. Às vezes, éramos arrolados nessa invectiva, pois o gigante nos apontava enquanto dizia coisas.

O empregado, demonstrando possuir um bom instinto de conservação, deixava-se sacolejar à vontade. Rosnando assustadoramente, o ciclope foi sentar-se de novo na saleta, onde só então dei pela presença de outro sujeito, também bêbado, mas sinistramente silencioso. É hoje, pensei. Sair do meu Brasilzinho tão bom, fazer uma viagem imensa, para ser trucidado sem explicação por um bêbado.

O fato de ser na Suécia, onde arbitrários atos de violência não são comuns, ainda tornava mais absurdo, um absurdo existencialista, o meu triste fim. Indaguei do empregado o que se passava. Ficou mudo. Insisti na pergunta, e ele, sussurrando desamparadamente, explicou-me que o gigante estava a pensar: primeiro, que não conseguira vaga no hotel por ser sueco e estar embriagado; segundo, que nós conseguíramos por ser americanos, norte- americanos.

Ora, se meu amigo de fato era meio ruivo, seu jeitão era mineiro; quanto a mim, se fosse americano, só poderia ser filho de portugueses. Por outro lado, o meu inglês amarrado não deixava a menor dúvida sobre a questão de ser ou não ser americano. Só mesmo um sueco bêbado em uma madrugada de neve e vento iria supor que fôssemos americanos. Mas agora era o próprio gigante que bradava para nós com sarcasmo e ira: - American! American!

Fiquei um pouco mais esperançoso, acreditando que ele falasse inglês, e disse-lhe, exagerando minha alegria e meu orgulho por isso, que não éramos americanos coisa nenhuma, éramos brasileiros. Não entendeu ou talvez pensou que estivéssemos covardemente a renegar a nossa pátria, voltando a vociferar, em um esforço 
lingüístico que contraía todos os músculos de seu rosto: - American! Dollar! No like!

As palavras em si significavam pouco, mas a maneira de exprimi-las era de um eloqüência que teria destruído Catilina muito mais depressa que os discursos de Cícero. Durante alguns minutos mantivemos os dois uma polêmica oratória nestes termos:

- American!
- No, brazilian!
- American!
- Brazilian!

Essa versátil discussão ia levar-me ao abismo, quando de súbito me pareceu que a palavra “brazilian” havia penetrado por fim em sua testa granítica. Descontraindo os músculos, o gigante me perguntou:
- Brazil?! No american? Brazil?

Não tinha certeza se ele estava me gozando, mas sua expressão era tão estranhamente deslumbrada e infantil, que afirmei cheio de entusiasmo:

- Yes, Brazil!
Ele se levantou, cambaleou, aproximou-se, apontou meu amigo:
- Brazil?
- Brazil, Brazil.
Veio chegando, sorrindo, em pleno estado de graça, e gritou com alma, como se saudasse o nascimento de um mundo novo:
- Flamengo!! Flamengo!!

Imediatamente, o gigante entrou em transe e começou a fazer problemáticas firulas com uma bola imaginária, mas dando a entender cabalmente o quanto ele admirava (admirava é pouco: o quanto ele amava) o malabarismo dos nossos jogadores.

O gigante se desencantara, virando menino. A certa altura, depois de fazer um passe de letra, parou e confessou-me com um orgulho caloroso:

- I Flamengo! I Rubens!

Ele não era sueco, não era gigante, não era bêbado, não era um ex-campeão de hóquei (conforme soube depois), era Flamengo, era Rubens. Depois cutucou-me o peito, tomado de perigosa dúvida:

- You! Flamengo?

Que o Botafogo me perdoe, mas era um caso de vida ou de morte, e também gritei descaradamente:

- Flamengo! Yes! Flamengo! The greatest one!

Wesley Machado

Nenhum comentário:

Postar um comentário